Perdoa-me esses delírios…

Maria
Antero de Quental

Tenho cantado esperanças…
Tenho falado d’amores…
Das saudades e dos sonhos
Com que embalo as minhas dores…

Entre os ventos suspirando
Vagas, tenues harmonias,
Tendes visto como correm
Minhas doidas fantasias.

E eu cuidei que era poesia
Todo esse louco sonhar…
Cuidei saber o que é vida
Só porque sei delirar…

Só porque a noite, dormindo
Ao seio duma visão,
Encontrava algum alívio,
Meu dorido coração,

Cuidei ser amor aquilo
E ser aquilo viver…
Oh! que sonhos que se abraçam
Quando se quer esquecer!

Eram fantasmas que a noite
Trouxe, e o dia já levou…
A luz d’estranha alvorada
Hoje minha alma acordou!

Esquecei aqueles cantos…
Só agora sei falar!
Perdoa-me esses delírios…
Só agora soube amar!

amor que viva e brilhe…

Amor vivo
Antero de Quental

AMAR! mas d’um amor que tenha vida…
Não sejam sempre tímidos arpejos,
Não sejam só delírios e desejos
D’uma doída cabeça escandecida…

Amor que viva e brilhe! luz fundida
Que penetre o meu ser – e não só beijos
Dados no ar – delírios e –
Mas amor… dos amores que têm vida…

Sim, vivo e quente! e já a luz do dia
Não virá dissipá-lo nos meus braços
Como névoa da vaga fantasia…

Nem murchará o sol à chama erguida…
Pois que podem os astros dos espaços
Contra uns débeis amores.. se têm vida?

Para eu adormecer…

Dá-me pois olhos e lábios;
Dá-me os seios, dá-me os bracos;
Dá-me a garganta de lírio;
Dá-me beijos, dá-me abracos!

Empresta-me a voz ingênua
Para eu com ela orar
A oração de meus cantos
De teu seio no altar!

Empresta-me os pés, gazela,
Para que eu possa correr
O vasto mundo que se abre
Num teu rir, num teu dizer!

Presta-me a tua inocência,
Para eu ir ao ceu voar…
Mas acende cá teus olhos
Para que eu possa voltar!

Por Deus to peço, senhora,
Que tu mo queiras fazer;
Dá-me os cílios de teus olhos
Para eu adormecer;

Por que, enquanto os tens abertos,
Sempre para aqui a olhar,
Nao posso fechar os meus,
E sempre estou a acordar!

Pela Santa-Virgem peço
Que tu me queiras sorrir;
Por que eu tenho um lírio d’ouro
Há três anos por abrir,

E, se Ihe deres um riso,
Há-de cuidar que e a aurora…
E talvez que o lírio se abra,
Talvez que se abra nessa hora!

Por Alá, minha palmeira!
Quando ao sol me for deitar,
Faze sombra do meu lado…
Por que eu quero-te abraçar!

D’amor te requeiro, ondina,
Quando te fores a erguer,
Ver-te no espelho das fontes…
Por que eu quero-te beber!

Sonho que sou um cavaleiro andante

O Palácio da Ventura
Antero de Quental

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!

“Ver onde os pés firmamos, e erguemos nossas mãos!”

Luz do sol, luz da razão
Antero de Quental

Tu, sol, é que me alegras!
A mim e ao mundo. A mim…
Que eu não sou mais que o mundo,
Nem mais que o céu sem fim…

Nem fecho os olhos baços
Só porque os fere a luz…
Ergo-os acima – e embora
Cegue, recebo-a a flux!

Crepúsculos são sonhos…
E sonhos é morrer…
Sonhar é para a noite:
Mas, para o dia, ver!

Sim, ver com os olhos ambos,
Com ambos devassar
Os astros n’essa altura,
E os deuses sobre o altar!

Ver onde os pés firmamos,
E erguemos nossas mãos!
E quer nos montes altos,
Quer nos terrenos chãos,

É sempre amiga a terra
E é sempre bom viver,
Se a terra à luz da aurora
E a vida ao amor se erguer!

Em toda a parte as ondas
D’esse infinito mar,
Por mais que andemos longe,
Nos podem embalar!

Em toda a parte o peito
Sente brotar a flux,
E sempre e à farta, a vida…
Vida – calor e luz!

Nos seixos d’essas praias,
Se o sol lá lhes bater,
N’um átomo de areia,
Deus pode aparecer!

Bata-lhe o sol de chapa,
E um deus se vê também
No pó, tornado um astro
Como esses que o céu tem!

Desprezos para a terra?!
Também a terra é céu!
Também no céu a impele
O amor que a suspendeu…

E quem lá d’esse espaço
Brilhar ao longe a vir
Dirá que é paraíso
E um éden a sorrir!

Embaixo! O que é embaixo?
Embaixo estar que tem?
Ninguém à eterna sombra
Nos condenou! ninguém!

Se até nos surdos antros,
Nas covas dos chacais,
Penetra o sol, vestindo-os
Com raios triunfais

Se ao céu até se viram
As bocas dos vulcões…
E têm os próprios cegos
Um céu… nos corações!

Não! não há céu e inferno:
Divino é quanto é!
Para que a rocha brilhe,
Basta que o sol lhe dê…

Basta que o sol lhe beije
As chagas que ela tem,
E a morta d’essa altura,
A lua, é sol também!

E as trevas da nossa alma,
A nossa cerração,
Oh! como se desbarata
A aurora da razão!

Mas se a razão, surgindo,
Nossa alma esclareceu,
Também tu, sol, no espaço
Surges, razão do céu…

Por isso é que me alegras,
Ó luz, o coração!
Por isso vos estimo…
Tu, sol, e tu, razão!

“Meus dias vão correndo vagarosos”

Aspiração
Antero de Quental

Meus dias vão correndo vagarosos,
Sem prazer e sem dor parece
Que o foco interior já desfalece
E vacila com raios duvidosos.

É bela a vida e os anos são formosos,
E nunca ao peito amante o amor falece…
Mas, se a beleza aqui nos aparece,
Logo outra lembra de mais puros gozos.

Minha alma, ó Deus! a outros céus aspira:
Se um momento a prendeu mortal beleza,
É pela eterna pátria que suspira…

Porém, do pressentir dá-ma a certeza,
Dá-ma! e sereno, embora a dor me fira,
Eu sempre bendirei esta tristeza!

“Em volta de que idéia gravitais?”

Oceano Nox
Antero de Quental

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o vôo do pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente,

Junto do mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía das coisas, vagamente…

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que idéia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O Inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais…

“Ideal, que nasceu na solidão”

Ideal
Antero de Quental

Aquela, que eu adoro, não é feita
De lírios e nem de rosas purpurinas,
Não tem as formas lânguidas, divinas,
Da antiga Vênus de cintura estrita…

Não é a Circe, cuja mão suspeita
Compõe filtros mortais entre ruínas,
Nem a Amazona, que se agarra às crinas
Dum corcel e combate satisfeita…

A mim mesmo pergunto, e não atino
Com o nome que dê a essa visão,
Que ora amostra ora esconde o meu destino…

É como uma miragem, que entrevejo,
Ideal, que nasceu na solidão,
Nuvem, sonho impalpável do desejo…

“Por desertos, por sóis, por noite escura”

O palácio da aventura
Antero de Quental

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura.
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!

“E não te quero nunca tanto (ouve isto)”

Intimidade
Antero de Quental

Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela – e se te não comparo a rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda…

Anda-me as vezes a cabeça a roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.

Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!

E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo,
Juras – mentindo – que me tens amor…