Três Quadros
Virgínia Wolf
TERCEIRO
O tempo permanecia suave. Se não tivesse ouvido aquele grito durante a noite, teria a impressão de que, finalmente, o mundo aportara a porto seguro, que vida deixara de ser agitada pelo vendaval, que o mundo alcançara, enfim, uma enseada tranqüila, onde repousaria quase imóvel. Entretanto, nos meus ouvidos, o som persistia. Onde quer que me dirigisse e, mesmo ao dar um passeio pelas colinas, qualquer coisa me parecia existir sob a superfície serena das coisas, fazendo-me descrer da estabilidade, da segurança, que à minha volta pareciam existir. Pela vertente, um rebanho pastava tranqüilo e o vale, ao fundo, estendia-se, ondulado como um mar calmo de verão. Passei por uma herdade solitária. No pátio um cachorro brincava e borboletas voltejavam sobre a urze. Tudo parecia gozar uma felicidade serena e pura. Contudo, na noite anterior, ouvira-se aquele grito e toda a beleza, toda a serenidade, que eu tinha ante os olhos, fora cúmplice. Sim, pelo menos consentira, e tudo continuava sereno, belo, embora aquele grito se tivesse feito ouvir e pudesse voltar a repetir-se. Toda a serenidade, toda a segurança eram aparência falaz…
E então, para alegrar-me, para dominar esta opressiva disposição, recordei a chegada do marinheiro. Tornei a ver o quadro, enriquecendo-o ainda com mais alguns pormenores – o vestido azul que ela trazia, a sombra que a árvore florida projetava sobre o jardim – que não notara até ali. Tornei a avistá-los junto da porta da casa, ele com seu saco, ela enfiando-lhe o braço, o gato amarelo enroscado à porta. E desta maneira, rememorando o quadro em todos os seus pormenores, pude, aos poucos, convencer-me de que realmente existiam calma e bem-estar para além da superfície das coisas e não nos esperava sempre qualquer surpresa traiçoeira e sinistra.
O rebanho pastando, espalhado pelo ondulado das colinas, a herdade longínqua, guardada pelo cão, e as borboletas pousando aqui e ali, eram realmente fatos e nada havia oculto sob tais aparências. E assim regressei à casa, pensando no marinheiro e na mulher, desenhando, um após outro, vários quadros de felicidade perene e de alegria, de modo a silenciar o desassossego que o tremendo grito deixara dentro de mim.
Alcancei finalmente a aldeia, atravessando o adro, por onde é forçoso atravessar; e, como sempre me acontece de cada vez que passo naquele local de paz, atentei na tranqüilidade das cinzas, repousando dentro do túmulo de pedra, ou em covas onde não existe sequer um nome a recordar. Quando por aqui passo, tenho sempre a impressão de que a morte é uma coisa alegre.
Eis então que um quadro mais se me apareceu.
Um homem abrindo uma cova e um bando de crianças merendando ao lado da sepultura. A mulher do coveiro, gorda e bonita, encostada a um túmulo, estendera o avental na relva, mesmo ao lado da cova que acabava de ser aberta, fazendo-o de toalha. De vez em quando, algum torrão caía no meio do serviço de chá. “Quem vai ser enterrado”, perguntei, “morreu finalmente o velho Mr. Dodson?” “Não, não, respondeu-me a mulher. “É para Rogers, o marinheiro. Morreu a noite passada de uma febre que apanhou na viagem. Não ouviu a mulher? Veio à estrada e gritou…” Depois, virando-se para um dos pequenos, “tem juízo, Tommy, estás te sujando de terra!”
Que quadro tremendo que não me atrevo sequer a esboçar…