“O que não enfrentamos em nós mesmos encontraremos como destino”.

fragmentos de Carl Gustav Jung

“O que não enfrentamos em nós mesmos encontraremos como destino”.

“O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado, e de algum modo esquecermo-nos excessivamente de algo, corremos o risco de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada.”

“O inconsciente sabe mais que o consciente mas seu saber é de uma essência particular, de um saber eterno que, frequentemente, não tem nenhuma ligação com o ‘aqui’ e o ‘agora’ e não leva absolutamente em conta a linguagem que fala nosso intelecto.”

“Nenhuma circunstância exterior substitui a experiência interna. E é só à luz dos acontecimentos internos que entendo a mim mesmo. São eles que constituem a singularidade de minha vida”.

Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações….

fragmentos de Fernando Pessoa in Livro do Desassossego

“O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto. Faço férias das sensações.”

“O ambiente é a alma das coisas.”

“Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora presente. Tenho fome da extensão do tempo, e que ser eu sem condições.”

“Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia.”

“O romancista é todos nós, e narramos quando vemos, porque ver é complexo como tudo.”

“E assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entonações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância – irmãos siameses que não estão pegados.”

A thing of beauty is a joy for ever

Uma alegria para sempre
PARA ELENA QUINTANA
Mário Quintana

As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as
datas não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides… Que importa se –
depois de tudo – tenha ela partido,
casado, mudado, sumido, esquecido,
enganado, ou que quer que te haja
feito, em suma? Tiveste uma parte da
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem queiras saber o quanto
deves à ingrata criatura…
A thing of beauty is a joy for ever
– disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer.

existem formas e sequências que se repetem, ainda que irregularmente distribuídas no espaço e no tempo…

Leitura de uma onda
Italo Calvino

O mar está levemente encrespado e pequenas ondas vêm bater na costa arenosa. O senhor Palomar encontra-se na praia, de pé, e observa uma onda. Não se pode dizer que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe muito bem aquilo que faz: pretende observar uma onda e observa-a. Não está contemplando, porque para a contemplação é necessário um temperamento adequado, um estado de espírito adequado e um conjunto de circunstâncias externas adequadas: e apesar do senhor Palomar não ter qualquer questão de princípio contra a contemplação, nenhuma destas três condições se verifica no seu caso. Finalmente, não são as “ondas” que ele pretende observar, mas uma única onda e basta: querendo evitar as sensações vagas, estabelece para cada um dos seus atos um objetivo limitado e bem definido.
O senhor Palomar vê despontar uma onda lá ao longe, vê-la crescer, aproximar-se, mudar de forma e de cor, enrolar-se sobre si própria, quebrar-se, desvanecer, refluir. Chegado a este ponto, poderia convencer-se de ter levado a cabo a operação que tinha decidido efetuar e poderia ir-se embora. Mas isolar uma onda, separando-a da onda que imediatamente se lhe segue e que parece empurrá-la, e que por vezes a alcança e a arrasta consigo, é muito difícil; assim como separá-la da onda que a precede e que parece arrastá-la atrás de si em direção à costa, salvo quando depois, eventualmente, se volta contra ela, como que para a deter.
Se além disso se considerar cada vaga no sentido do comprimento, paralelamente à costa, é difícil estabelecer até onde a frente que avança se estende com continuidade e onde se separa e se segmenta em ondas individualizadas, distinguíveis pela velocidade, forma, força, direção.
Em resumo, não se pode observar uma onda sem ter em conta os aspectos complexos que concorrem para a sua formação e aqueles outros, igualmente complexos, a que essa mesma onda dá lugar. Estes aspectos variam continuamente, pelo que uma onda é sempre diferente de uma outra onda; mas também é verdade que cada onda é igual a uma outra onda, mesmo que não seja aquela que lhe é imediatamente contígua ou sucessiva; em resumo, existem formas e sequências que se repetem, ainda que irregularmente distribuídas no espaço e no tempo. Como aquilo que o senhor Palomar pretende fazer neste momento é simplesmente ver uma onda, ou seja, colher todas as suas componentes sem descurar nenhuma delas, o seu olhar deter-se-á no movimento da água que bate na costa, até poder registar aspectos ainda não recolhidos anteriormente; assim que se aperceber de que as imagens se repetem, saberá que viu tudo o que queria ver e então poderá parar.
Homem nervoso, vivendo num mundo frenético e congestionado, o senhor Palomar tende a reduzir as suas relações pessoais com o mundo exterior e para se defender da neurastenia generalizada, procura, tanto quanto possível, manter as suas sensações sob controle.
A crista da onda que avança levanta-se num ponto determinado, mais do que nos outros, e é ali que começa a franjar-se de branco. Se isso acontece a uma certa distância da costa, a espuma tem tempo de se enrolar sobre si própria e de desaparecer de novo, como que engolida, para no mesmo momento tornar a envolver tudo, mas desta vez despontando de baixo, como um tapete branco que trepa pela praia acima para acolher a onda que está para chegar. Mas, quando se espera que a onda role sobre o tapete, verifica-se que já não há onda, mas somente o tapete, e mesmo este desaparece rapidamente, tornando-se uma cintilação de areia molhada que se retira veloz, como se fosse empurrada pela areia enxuta e opaca que faz avançar o seu limite ondulado.
Ao mesmo tempo, torna-se necessário considerar as reentrâncias da linha frontal, onde a onda se divide em duas alas, uma que tende para a costa da direita para a esquerda e outra da esquerda para a direita, e o ponto de partida ou de chegada desse seu divergir ou convergir é esta extremidade em negativo, que segue o avançar das ondas mas que é sempre mantida mais atrás do que elas, sujeita ao seu alternado sobrepor-se, até ser alcançada por uma outra vaga mais forte, a qual enfrenta por sua vez o mesmo problema de divergência/convergência, e em seguida por uma outra ainda mais forte, que desfaz o redemoinho, rebentando com ele.
Tomando como modelo o desenho das ondas, a praia insinua na água algumas línguas de areia mal delineadas, que se prolongam em bancos submersos, daqueles que as marés fazem e desfazem a cada maré. Foi uma destas baixas línguas de areia que o senhor Palomar escolheu como ponto de observação, porque as ondas batem nela obliquamente de um lado e do outro, e ao cavalgarem a superfície semi submersa encontram-se com as que chegam do outro lado. Assim, para compreender como é feita uma onda, há que ter em conta estes impulsos em direções opostas, que em certa medida se contrabalançam e em certa medida se vão somando, produzindo uma rebentação generalizada de todos os impulsos e contra impulsos no rotineiro alastrar da espuma.
O senhor Palomar procura agora limitar o seu campo de observação; se ele considerar um quadrado, digamos, de dez metros de mar, pode fazer um inventário completo de todos os movimentos de ondas que ali se repitam com variadas frequências, num dado intervalo de tempo. A dificuldade consiste em fixar os limites desse quadrado, porque se ele considerar, por exemplo, como o lado mais distante de si a linha mais proeminente de uma onda que avança, esta linha, ao aproximar-se dele e ao elevar-se, esconde aos seus olhos tudo aquilo que está por detrás dela; e eis que o espaço tomado em consideração se inverte e se reduz ao mesmo tempo.
De qualquer modo, o senhor Palomar não desanima e pensa, em cada momento, que viu tudo aquilo que podia ver a partir do seu ponto de observação; mas acaba por aparecer sempre qualquer coisa que ele não tinha tomado em consideração. Não fora esta sua impaciência por alcançar um resultado completo e definitivo através da sua operação visual, o observar das ondas seria para ele um exercício muito repousante e poderia salvá-lo da neurose, do enfarte e da úlcera gástrica. E talvez pudesse ser essa a chave para dominar a complexidade do mundo, reduzindo-a ao seu mecanismo elementar.
Mas cada uma das tentativas para definir este modelo tem de se haver com uma onda longa, que sobrevém numa direção perpendicular à rebentação e paralela à costa, fazendo deslizar uma crista contínua que mal aflora à superfície. Os saltos das ondas, que se vão emaranhando em direção à costa, não perturbam o impulso uniforme dessa crista compacta, que as corta em ângulo reto e que não se sabe para onde vai nem de onde venha. Talvez seja uma brisa de levante que faz mover a superfície do mar perpendicularmente ao impulso profundo que chega das massas de água situadas ao largo, mas esta onda que nasce do mar, recolhe também, ao passar, os impulsos oblíquos que nascem da água, desvia-os e fá-los tomar a sua direção, e leva-os consigo. Continua assim a crescer e a ganhar força, até que o choque com as ondas contrárias a extingue aos poucos, fazendo-a desaparecer, ou então a torce, fazendo-a confundir-se com uma dessas muitas dinastias de ondas oblíquas, atirada à costa com elas. E fixar a atenção sobre um pormenor fá-lo saltar para o primeiro plano e invadir o quadrado, como no caso de certos desenhos em que basta fechar os olhos e reabri-los para que a perspectiva tenha mudado. Agora, neste cruzamento de cristas de variada orientação, o desenho global aparece fragmentado em painéis que emergem e se desvanecem. Acrescente-se ainda que o reflexo de cada uma das ondas tem ele próprio a sua força, que contraria as ondas que se lhe seguem. E se se concentrar a atenção sobre estes impulsos para trás, parece que o verdadeiro movimento é aquele que parte da costa e vai em direção ao largo.
Será que o verdadeiro resultado a que o senhor Palomar está a chegar é o de fazer correr as ondas em sentido oposto, o de inverter o tempo, o de apreender a verdadeira substância do mundo, para lá dos hábitos sensoriais e mentais? Não, ele chega apenas até ao ponto em que se experimenta um ligeiro sentimento de vertigem, nada mais. A obstinação que impele as ondas em direção à costa acaba por vencer: de fato, as ondas cresceram enormemente. Será o vento que está a mudar? Que desgraça seria se a imagem que o senhor Palomar conseguiu minuciosamente construir se baralhasse e se quebrasse e se dispersasse. Só se conseguir lembrar-se do conjunto de todos os aspectos é que poderá iniciar a segunda fase da operação: estender este conhecimento ao universo inteiro.
Bastaria não perder a paciência, o que não tarda a acontecer. O senhor Palomar afasta-se pela praia fora, com os nervos tão tensos como quando chegara, e ainda mais inseguro acerca de tudo.

O sonho é uma montanha que o pensamento há de escalar

O sonho é uma montanha que o pensamento há de escalar. Não há sonho sem pensamento, não há primavera sem flor. O sonho é a semente da flor. (…) Sonho é o deslizamento do nosso momento (…) (“O Sonho” in: Meus Primeiros Contos.AZULAY, 1975)

(…) Mas eu gosto de brincar porque isto me ensinou a do meu amigo gostar. Brincar é ensinar idéias. (“A Brincadeira é” in: Meus Primeiros Contos. AZULAY, 1975)